Brasil – Duas mulheres, uma tragédia
Frei Betto *
Adital – Talvez a auxiliar de serviços gerais Liliam Gonzaga da Costa, 43, nunca tenha assistido a uma peça de Sófocles e nem saiba quem é AntÃgona. Apesar de as duas estarem separadas por 26 séculos, têm em comum a fidelidade amorosa a seus parentes, o senso de justiça e a defesa do direito de os vivos prantearem seus mortos.
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AntÃgona decidiu ignorar as ordens do poderoso Creonte, rei de Tebas, e deu sepultura a seu irmáo Polinices, cujo cadáver o governante exigira permanecer insepulto, exposto à voracidade das aves e dos cáes, para que o horror inibisse outros pretendentes ao trono.
Liliam queria apenas encontrar o filho Wellington Gonzaga de Costa, 19, estudante. No sábado pela manhá, ele náo retornara do baile que, na véspera, fora em companhia dos amigos Marcos Paulo da Silva Correia, 17, estudante, e David Wilson Florêncio, 24, pedreiro. Os três moravam no Morro da Providência, no centro do Rio.
AntÃgona, levada à prisáo, pôs fim à vida antes de saber que o sábio Tirésias convencera Creonte a libertá-la e sepultar o corpo de Polinices. Liliam, na manhá de sábado, soube a razáo por que o filho náo retornara: ao voltar do baile, ele e seus amigos foram abordados por soldados e oficiais do Exército. Náo praticavam crimes, náo usavam drogas, náo faziam arruaças. Por quê?
Os militares levaram os três para serem interrogados no quartel do bairro de Santo Cristo. Ali, Liliam, afinal, viu Wellington e seus amigos vivos, na manhá de sábado. Assim como Hêmon, filho de Creonte, confiou que o pai haveria de suspender a puniçáo a AntÃgona, Liliam náo temeu pela sorte dos jovens. Sobretudo do filho, que sonhava em ingressar no Exército.
Liliam jamais poderia supor que Wellington, Marcos e David seriam condenados pelos militares que os seqüestraram ao mais cruel dos castigos: foram entregues a traficantes do Morro da Mineira, inimigos dos traficantes da Providência. No domingo à tarde, os corpos dos três foram encontrados, marcados de torturas e crivados de balas, no lixáo de Gramacho.
Testemunhas presenciaram quando cerca de dez militares entregaram os rapazes aos traficantes da Mineira.
A crÃtica de Sófocles ecoa desde o século V antes de Cristo: por que as leis de Creonte náo se inspiravam nas leis divinas? Em termos hodiernos, por que oficiais e soldados do Exército entregam inocentes a assassinos e traficantes de drogas? Por que policiais militares do Rio organizam milÃcias para extorquir moradores de áreas mais pobres?
Comemoram-se neste ano o 60o aniversário da Declaraçáo Universal dos Direitos Humanos. Será que nos cursos de formaçáo em nossas unidades policiais e militares o tema dos direitos humanos é encarado com seriedade ou é ridicularizado? Na segunda hipótese, abre-se a porta para que a farda se transforme em prepotência e a arma em recurso criminoso. A cidadania é violentada e a democracia ameaçada.
Náo é difÃcil saber como as empresas selecionam seus funcionários. Como sáo formados os que têm, por dever constitucional, a funçáo de defender a populaçáo e a soberania nacional? Em treinamentos intensivos prejudiciais à saúde fÃsica e mental ou na familiaridade com grandes humanistas da história, como Sócrates, Jesus, Gandhi, Luther King, Chico Mendes e Betinho? Conhecem as tragédias gregas para que náo se repitam miseravelmente como tragédias brasileiras?
As Forças Armadas e a PolÃcia Militar náo merecem que a sua história, seu serviço à pátria e à populaçáo, seus exemplos de heroÃsmo e respeito à s leis e aos cidadáos, sejam maculados pelos 21 anos de ditadura e por episódios macabros como o que sacrificou a vida dos amigos e do filho de Liliam. Por isso, náo devem temer a verdade, irmá gêmea da justiça.
AntÃgona náo viu a justiça prevalecer nem alcançou a táo almejada liberdade. Queira Deus que o futuro de Liliam e de tantas famÃlias favelizadas – por esta naçáo que concentra 75,4% da riqueza em máos de 10% da populaçáo (Ipea, 2008) -, náo coincida com o da heroÃna grega.
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